O que são os Jovens do Torne


Jovens do Torne


            Assim se auto denominou um grupo de rapazes e raparigas na década de sessenta do século passado que passou a reunir-se e a desenvolver diversas actividades culturais, recreativas e sociais no Salão Paroquial da Igreja Lusitana, situado na Rua 14 de Outubro no antigo Lugar do Torne, Vila Nova de Gaia, onde até então apenas se realizavam actividades residuais daquela paróquia.
            Naquela instituição religiosa existia um grupo paroquial denominado Liga do Esforço Cristão, com o seu grupo de jovens, os quais, antes de Agosto de 1968, e na sequência das ideias produzidas em França durante o “Maio de 68”, pedem a demissão e propõem-se constituir um grupo autónomo em que os seus dirigentes fossem eleitos pelos restantes membros, ficando de elaborar os respectivos estatutos, tendo para tal convocado a primeira assembleia geral para 5 de Outubro desse ano, passando desde então a reunir regularmente naquele Salão Paroquial, atraindo às suas actividades, não só os jovens membros daquela confissão religiosa, mas também católicos romanos e outros sem filiação religiosa que residiam nas imediações ou que passaram a participar nas suas actividades.
            Este grupo informal auto organizou-se sob a direcção da comissão representativa eleita acima referida, onde pontificavam os mais velhos e mais experientes, tendo entretanto criado diversas secções com propósitos práticos, como a administração do bar localizado na cave do palco do Salão, a venda de livros, alguns então proibidos, para actualização dos seus conhecimentos, o ensaio de peças de teatro de Almeida Garrett e de Molière e de espectáculos musicais, a realização de campeonatos de ping-pong e corridas de corta-mato, a edição do boletim e outros cadernos com textos de reflexão, exposições de pintura, fotografia e equipamentos desportivos, além da promoção do convívio permanente entre os seus membros e com outros grupos mais ou menos idênticos.
            Uma parte deste grupo, formado por ex-alunos da Escola do Torne que jogavam a bola na Rua Elias Garcia, tinha alguns antecedentes organizativos pois no início da década tinham formado uma equipa chamada “os Elienses”, que disputava renhidos jogos de futebol de rua com grupos idênticos dos bairros das Pedras, da Serra e da Gervide. Mas o “campo” do Torne tinha uma particularidade única no mundo do futebol: as duas balizas situavam-se do mesmo lado da “linha” lateral e não no meio das extremidades do rectângulo, pois eram constituídas por dois portões das propriedades situadas do lado poente da rua; o guarda-redes até podia defender as bolas, chutadas em ângulo recto, encostado à superfície da “baliza”. Alguns destes jovens, depois do ensino primário, foram estudar, uns para o liceu no Porto outros para a Escola Comercial e Industrial de Vila Nova de Gaia e resolveram também criar um clube mais ou menos secreto, denominado Os Sombras (O.S.), que começa por editar um jornal denominado O Douro, copiando à mão textos e desenhos, o qual teve três números a partir de Outubro de 1963 e terminou no Natal desse ano. A tentativa de o editar através de um duplicador químico, cuja base era um tabuleiro com gelatina, revelou-se um desastre para a nova camisola branca de um deles que a mãe tricotara com esmero.
            Como neste grupo preponderavam os que, além de terem frequentado a Escola do Torne, eram também jovens activos na Igreja Lusitana, em 1965 fundam um novo grupo chamado “Por Cristo”, passando a dedicar-se ao campismo e a editar o jornal O Herói, que teve cinco números e que, a partir do n.º 3 de Junho de 1966, já aparece como “Boletim do Centro Cristão e Cultural” (C.C.C.), uma outra associação que chegou a ter uma biblioteca, um grupo cénico, uma equipa de futebol, “reuniões dançantes” na antiga fábrica de fogões a petróleo “Fama”, que entretanto mudara de ramo, e três acampamentos. Este já era um grupo organizado com sócios espalhados por Gaia e Porto unidos pelo Boletim.
O número de sócios e de simpatizantes foi crescendo, mas havia o problema da sede, que até aí funcionava em casa dos directores. Pensava-se em fazer sair o boletim uma vez por mês, realizar passeios anuais, organizar uma colecção de discos e comprar um gira-discos… mas tal não chegou a acontecer porque o C.C.C. dissolve-se em 1968 naquele outro grupo que estava a nascer e tinha sede: os Jovens do Torne.
            Entretanto os jovens da Igreja Lusitana tinham começado a ser reorganizados e entusiasmados para uma nova atitude religiosa, cultural e social pelo bispo D. Luís Pereira, que queria reactivar em moldes diferentes o “Esforço Cristão do Torne”. A partir de Dezembro de 1966 publicam o boletim Juventude, o que criou algumas clivagens com os membros mais conservadores daquela paróquia protestante, enquanto que, com as suas actividades culturais, sociais e até religiosas iam atraindo para o grupo mais jovens católicos romanos ou indiferentes. Estava-se então no período da divulgação do movimento que a 10 de Junho de 1971 reunirá no Centro Ecuménico Reconciliação na Figueira da Foz mais de meia centena de jovens das Igrejas Lusitana, Metodista, Presbiteriana e Católica Romana no espírito renovado da declaração de Upsala de 1968 e da Mensagem de Taizé.
            Em Dezembro de 1969 publica-se o primeiro número de Esboço «pró-revista boletim dos jovens da Igreja Lusitana de S. João Evangelista, Torne, Vila Nova de Gaia», dedicada ao 10.º aniversário da Declaração dos Direitos da Criança, a qual terá um segundo número em Março de 1970 dedicado à morte de Bertrand Russell e um terceiro (e último) em Abril desse ano, dedicado ao Ano Internacional da Educação. A denominação Jovens do Torne já era comummente usada, pelo menos desde os finais de 1969, para designar este grupo alargado, com carácter abrangente em termos de filiações, religiosas ou mesmo para além delas.
            A revista Esboço foi encerrada por ordem das autoridades, por não estar registada nem ser submetida à censura prévia, e a PIDE começa a rondar o grupo, inquirindo as suas actividades e propósitos. Estrategicamente, a secção editorial aceitava como publicidade na mesma a divulgação da revista Actividades Nacionais, publicação subserviente perante o regime, e afixou nas paredes do Salão cartazes de propaganda às “províncias ultramarinas”, e à Guerra Colonial, o que baralhou o agente da PIDE que um dia foi inspeccionar o Salão, as suas dependências e actividades. Estava-se então em plena “primavera marcelista”, mas a incorporação obrigatória no exército colonial aparecia como um muro de betão na estrada da vida dos rapazes do Torne. É com este espectro no horizonte que continuam a promover sessões de música de intervenção e de poesia contemporânea de poetas contra o regime e a Guerra Colonial: Zeca Afonso, José Mário Branco, António Gedeão e Manuel Alegre são alguns dos que passam a ser o som e a voz da sua revolta, enquanto organizam vários colóquios sobre os então candentes assuntos internacionais: a fome, a educação, a liberdade de expressão, a guerra, o desenvolvimento.
            Mas o voluntarismo destes jovens não se exercia só no Salão: tão depressa carregavam numa carroça de mão os cenários e adereços da sua secção de teatro, que puxavam de noite até Coimbrões para irem representar as suas peças de teatro, como iam até ao Gerês em excursão dar apoio à população da aldeia de Valdozende que exigira a substituição do pároco católico e, como o bispo não lhes fizesse a vontade, trocaram-no por um pastor protestante, por acaso metodista, ou seja, que nem sequer era da Igreja Lusitana. E seguiram-se então muitos convívios naquela aldeia que viu que nos Jovens do Torne conviviam protestantes de várias correntes, católicos e indiferentes, e com isso também consolidou o respeito pelas convicções próprias e alheias.
            O encerramento compulsivo do Esboço não determinou o fim da actividade editorial: a 1 de Julho de 1971 sai o primeiro Caderno Informativo, que descrevia a realização de uma feira do livro no Salão mas também os problemas sociais na Irlanda do Norte, e cujo n.º 2 sairá em Junho de 1972, depois de ali acolherem uma exposição sobre a obra de Alves Redol. Entretanto, publicavam-se os cadernos Textos, o n.º 1 sobre Liberdade de Imprensa e Lei de Imprensa (que teve 2.ª edição), o n.º 2 sobre a Declaração da ONU sobre a eliminação da descriminação relativa às mulheres, e o n.º 3 sobre a música popular e rock da época.
            Com a partida para a Guerra Colonial de alguns dos seus membros masculinos, ou para o estrangeiro como estudantes, este grupo, que nunca teve cartões de sócios ou quotas estipuladas, até porque resultava de todas as ambiguidades atrás enunciadas e, portanto, não existia legalmente, foi decaindo. Os que ficaram, os que já tinham feito a tropa ou que eram do sexo feminino, após a última peça representada, o Doente Imaginário de Moliére, acabam por ir parar ao grupo de teatro de Os Modestos, no Porto, onde integraram o elenco da revista Humor Próprio, que teve ali várias representações e chegou a deslocar-se a Évora a um festival de teatro amador.
            Entretanto, como atrás dissemos, muitos dos Jovens do Torne masculinos foram sendo incorporados no serviço militar obrigatório. Outros deixaram Vila Nova de Gaia e rumaram ao exílio. Outros procuraram longe o que a sociedade local não lhes dava. Após 25 de Abril de 1974 o grupo tentou recompor-se, mas tal já não foi possível. Os tempos eram outros. A sociedade portuguesa de então, em fase de democratização, tinha outras solicitações para os teenagers dos anos sessenta. Os Jovens do Torne, a título individual, tinham então outros desafios; colectivamente tinham deixado de ter razão de existir como grupo. O centenário Salão Paroquial e a casa das professoras contígua foram entretanto demolidos no princípio dos anos oitenta para dar lugar a um pavilhão multiusos. Como tinha avisado Bob Dylan, The Times They Are a-changin’.     
            Desse grupo de cerca de três dezenas de amigos, cada um, ou nalguns casos cada dois, seguiram o seu caminho. Sete deles viriam a ser professores universitários e os restantes exercem as mais variadas profissões. Nenhum deles se tornou bandalho. Muitos deles casaram e tiveram filhos e netos, que são hoje os filhos e netos dos Jovens do Torne, uma circunstância que, não tendo grande valor em si, lhes deve dar algum humano conforto por serem descendentes da geração que tudo isto viveu. Muito poucos se dedicaram à política activa. Alguns continuaram a escrever, a pintar, a fazer música. Parece que nenhum deles deseja morrer descalço e ainda hoje apreciam uma boa hora de convívio, uma boa gargalhada. Às vezes o núcleo mais próximo reúne-se com alguma regularidade. Alguns não se viram durante trinta anos. Consideram-se todos amigos e acham-se ainda hoje Jovens do Torne, seja lá o que isso queira dizer. Sabem que pelo menos quer dizer estima, afecto e boas recordações.
            Passadas cerca de quatro décadas e quase duas gerações a História poderá começar a tomar conta deles como um grupo de jovens gaiense dos anos sixties, órfãos do Maio de 1968, opositores à guerra nas colónias e no Vietnam, que às suas diferenças cantaram então o Let it be e o Imagine, que nunca esqueceram o Yesterday e hoje trauteiam o When I’m Sixty-Four dos Beatles. Tudo isto no antigo lugar do Torne, onde ainda existe uma escola fundada em 1868 por um homem bom chamado Diogo Cassels, que muito para além das ideias, das crenças, das religiões, das políticas, da condição social, vislumbrou a eterna crença da juventude num mundo melhor e mais fraterno. Foi também esta remota lição que aprenderam e que procuraram seguir. Foi um pouco desse mundo ideal que os Jovens do Torne viveram, partilharam com outros e conservaram para si e que ainda hoje recordam sempre que se encontram.

Vila Nova de Gaia, 5 de Junho de 2010

J. A. Gonçalves Guimarães
(António Rua)